Morreu João Ninguém 

O dia amanheceu como qualquer outro, nenhuma notícia nova ou importante circulava entre os aldeões de uma pequena comunidade fundada bem no centro da Serra do Mar, às margens da BR 040, até que a aparente normalidade foi interrompida com a notícia da morte súbita de João Ninguém.

No início um pequeno tumulto formou-se na porta da casa desta pobre e solitária criatura, mas logo se dispensaram, para evitar envolverem-se com as complicações pertinentes ao óbito.
João Ninguém vivera toda a sua vida naquela aldeia, conhecia e era conhecido de todos. As saudações do dia a dia eram mera cordialidade. Na verdade estavam todos sempre ocupados com suas vidas e sem tempo para perder justamente com uma pobre criatura como o João Ninguém.

Nas horas de folga, João Ninguém costumava sentar-se junto ao portão da sua casa para trocar algumas palavras com os transeuntes e quem sabe, conseguir algum cigarro de graça. Diz o ditado, que uma dose de cachaça e um cigarro não se nega a ninguém. Esta frase possivelmente nasceu dos lábios de algum filósofo dado aos dois vícios.

João Ninguém era uma figura excêntrica, não era muito chegado ao banho, só vestia-se de preto, tinha o cabelo liso, cortado tipo cabelo de índio. sua pele era branca, mas a idade, a falta de um bom banho e os sofrimentos da vida davam-lhe um aspecto meio pardo.

João Ninguém era pobre, vivia em um mundo segregado, sua diversão consistia em viver em casa assistindo TV, ouvindo suas músicas preferidas, fumando seu cigarro e uma vez ou outra tomando uma cachacinha.

Quando mais jovem, João Ninguém envolveu-se com uma moça da sua aldeia com quem teve dois filhos, mas sempre viveu só e sua relação com os filhos era à sua maneira.

O pai de João Ninguém era um artesão por excelência, no entanto, por alguma desilusão na vida, resolveu viver como andarilho e pedinte nas ruas da cidade. Certamente que a vida do pai deixou-lhe marcas profundas na alma. Mas não era de falar de suas dores, talvez buscasse através do cigarro e da bebida exteriorizar seus complexos retidos e silenciados na alma. Aliás, quem neste mundo teria tempo para ouvir a história da má sorte de João Ninguém? Assim vivia ele, isolado, calado, discriminado e solitário.

João Ninguém tinha uma ferida na perna para a qual não havia cura, infelizmente não tenho conhecimento de que tipo de ferimento se tratava, mas a mesma havia rendido-lhe, para além do sofrimento, uma pensão vitalícia por parte do governo.

João Ninguém era pobre, gostava de pedir as coisas, algo que fazia mais por vício do que por necessidade, diferente do pai, construiu uma casinha simples onde vivia. E com a pensão que recebia do governo mobiliou sua casa com o que era necessário para viver sua vidinha solitária.

Suas irmãs apareciam de tempo em tempo para ajudá-lo numa coisa ou outra, especialmente na sua saúde, chegou mesmo a viver com uma de suas irmãs por alguns anos, mas após construir sua casinha buscou nela o isolamento.

Com o falecimento de João Ninguém começou uma saga das últimas horas. João Ninguém seria sepultado como indigente se não fosse a iniciativa de uma irmã e dois sobrinhos que ajudaram a custear as despesas do funeral. Depois de tudo pronto para o velório o corpo seguiu para a capela onde seria velado, mas por quem? Esperava-se por algum amigo, vizinho ou parentes, mas apenas quatro pessoas apareceram.

A determinada hora da noite aparece um de seus irmãos, bêbado e ao invés de juntar-se aos enlutados, procurava ofender os presentes, tal fora a ofensa que todos retiraram-se para suas casas deixando João Ninguém e o bêbado. Ao amanhecer o bêbado já havia voltado para casa, e aos poucos foram chegando algumas pessoas, eram por volta de seis ou sete pessoas. E assim findaram-se os dias de João Ninguém. Um sobrinho religioso fez algumas orações e a seguir o corpo seguiu para o cemitério.

O caixão tinha seis alças, mas só havia três homens para carregá-lo. A solução foi pedir a ajuda de um funcionários da funerária que com má vontade ajudou-os a carregar o corpo até o carro que o levaria ao cemitério.

O féretro foi seguido pelos que estavam no funeral e mais três cachorros, que dizem, acompanham todos os funerais. João Ninguém gostava de animais, de maneira que ser seguido por cães nos seus últimos instantes certamente traria-lhe alguma alegria.

No cemitério restaram apenas três homens para carregar o caixão, sobrou inclusive para o pastor que agarrou-se aos pés do caixão, enquanto outros dois carregavam a parte de trás. O túmulo, uma cova rasa, ficava no alto de um morro, onde aguardavam os coveiros.

A subida foi difícil, mas logo o corpo estava na cova, cada um deitou um punhado de pétalas de rosas sobre o caixão e um a um retiraram-se em silêncio, mesmo sem que o caixão estivesse completamente coberto de terra, encerrando assim um ciclo de uma vida que aparentemente foi irrelevante.

Terá sido uma vida realmente irrelevante? Teriam seus pais sorrido no dia do seu nascimento? Teria sua mãe dado-lhe o peito para amamentá-lo? Teriam seus irmãos brincado com ele enquanto crescia? Teria algum amigo procurado sua companhia? O terá amado a mãe de seus filhos? Será que seu sexo terá sido prazeroso o suficiente para que fosse repetido? Terá João Ninguém falado com Deus alguma vez na vida? Terá alguém o amado ou recebido seu amor? Terá João Ninguém tido alguma atitude altruísta?

Um sim aqualquer destas perguntas é o suficiente para que sua vida e sua morte no anonimato tenha valido a pena.

Adeus João Ninguém, estas letras são uma tentativa minúscula de imortalizar tua vida anónima e sofrida.

P.S. Em memória de André Luis Ribeiro, meu tio.

4 pensamentos sobre “Morreu João Ninguém 

  1. Quantos João Ninguém existem por esta vida a fora? Serei eu uma Maria Ninguém? Sabe lá se não serei?… Mas o que importa é a pouca felicidade que teve na breve experiência de vida humana na Terra.

  2. …, de João Ninguém, pouco a pouco me livrei .
    Mas, ‘inda hoje , sinto a presença dele, me fazendo companhia, nas noites enluaradas, ao redor das fogueiras, nas noites com bafos de estrelas frias.
    João Ninguém sou eu, somos nós, somos quase todos que não ouvimos os ecos e desejos de respostas que ficaram cravadas nas cavernas do desprezo, do descaso sem importãncia, de ouvir ao menos um “eu te amo” , para o conforto de minh’alma …

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